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De crianças a alunos: uma tese

Foto do escritor: Luciana ChamarelliLuciana Chamarelli

Este trabalho visa analisar a tese de doutorado de Flávia Millher Naethe Motta, intitulada De Crianças a Alunos: transformações sociais na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental e defendida no Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro em 2010[1].


Motta (2010) elaborou sua tese sobre as transformações sociais na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental e a ação da cultura escolar sobre as culturas infantis, transformando os agentes sociais crianças em agentes sociais alunos. As perguntas centrais foram: como se dão as ações e as práticas das instituições escolares que poderiam ser tomadas como estratégias de poder voltadas para a conformação das crianças em alunos? Ser criança e ser aluno: como sujeitos da pesquisa vivenciam essas categorias na Educação Infantil e no Ensino Fundamental? As culturas infantis apresentam táticas de resistência? É possível identificar intencionalidade nelas? Em caso afirmativa, como elas se propagam entre as crianças? Como as crianças incorporam os valores que vão se configurar no papel social de alunos? Como constroem a identidade de si enquanto alunos? O que dizem disso?


O campo desconstruiu muitas questões para a autora, revelando outras que acabaram se colocando mais relevantes. A pesquisa aconteceu em uma escola da rede municipal do Município de Três Rios do Estado do Rio de Janeiro. A entrada em campo se deu no início de agosto de 2007, através de observação semanal com quatro horas de duração, até maio de 2008. No primeiro momento os instrumentos para o recolhimento de dados foram: diário de campo e registros fotográficos. No segundo momento até o final da pesquisa, ficou definida a presença no campo a cada início de semestre letivo, durante algumas horas ou dias, com o objetivo de avaliar as transformações vividas pelos sujeitos nesse período. As observações foram realizadas em momentos de sala de aula, pátio, refeitório, entrada e saída, festas comemorativas da escola e ensaios preparatórios para o desfile de alunos das escolas públicas no dia 7 setembro.


Os fundamentos teórico-metodológicos da tese são tecidos através de diálogos com os conceitos elaborados especialmente por Bakhtin, Vigotski, Foucault, Certeau. Cada um desses autores contribuiu de maneira específica para a análise das questões levantadas. De um lado, Bakhtin e seu estudo sobre alteridade são tomados como condição essencial para compreender a constituição do humano. O “eu” não se constitui isoladamente, ele existe em relação dialética com aquilo que é outro, que lhe proporciona o acabamento. Para Bakhtin, assim como para Vigostki, a consciência tem caráter social. Ela se constrói nessa relação necessária entre o “eu” e o outro. As proposições bakhtinianas foram tomadas para pensar a constituição da subjetividade do aluno, inserido num discurso que se configura como “cultura escolar”.


Em outro plano, Freud, Foucault e Vigostki na análise das diferentes concepções de subjetividade. Freud e Focault trazem a idéia do sujeito como construção social e histórica. A partir desse ponto de vista, Motta avança a discussão teórica, entendendo com Vigotski que o sujeito é constituído pelas significações culturais produzidas a partir do momento em que os sujeitos se relacionam produzindo sentidos. Nessas perspectivas, a autora da tese trabalha a subjetividade como produção de uma relação dialética, psicológica e das relações sociais.


Na busca para entender a gênese da constituição do modo de ser aluno, a autora recorre à conceituação da forma escolar. A partir de Vicent, Lahire e Thin compreendeu que a parição de uma forma social está intrinsecamente relacionada a outras transformações: a inauguração do modelo de relação chamado de pedagógica; a instauração da escola como o espaço da relação pedagógica que ensina conhecimentos desvinculados do fazer; a criação do tempo escolar como tempo da vida. E essas transformações já conferem identidades – modos de ser – ao sujeito humano.


Flávia Motta (2010), avança o estudo da forma escolar com Canário, estabelecendo com o autor dimensões para a análise. Compreende com Canário que a escola é uma modalidade de aprendizagem que se baseia na revelação, na cumulatividade e na exterioridade dos saberes, e que sua forma invisível é fruto da naturalização na organização dos tempos, espaços e agrupamentos dos alunos que determinam ação dos agentes educacionais e limitam o pensamento crítico sobre as próprias práticas. Assim a escola é “uma instituição com valores e objetivos que desempenha papel de unificação cultural, lingüística e política fundamental na construção dos Estados Modernos.”


Por fim, a sociologia da infância e o conceito de cultura escolar permitiram explicitar elementos do campo colocando-os num contexto. Flávia Motta entra no debate de cultura escolar trazendo Julia, Chervel, Forquin e Viñao Frago. Diante do panorama apresentado na tese fica evidente as variações nas concepções teóricas de cultura escolar, a autora considera a “escola como uma instituição que possui discursos e formas de ação construídas historicamente, como decorrência dos confrontos e conflitos provocados pelo choque entre as determinações externas e ela e as suas tradições, as quais se refletem na sua organização e gestão, nas suas práticas cotidianas, nas salas de aula e nos pátios e corredores” (Motta, p.114). Seguindo a discussão de cultura escolar, a autora analisa especificamente o currículo como dispositivo de poder e a invenção do aluno, na visão de Sacristán.


Continuando a desvendar a empiria, segue para o estudo das concepções de culturas infantis, especialmente aquelas discutidas no âmbito da Sociologia da Infância, e as de cultura escolar. A consolidação da infância como categoria social se deu historicamente pela negatividade, por aquilo que não podia falar ou fazer. A Sociologia da Infância (Corsaro e Sarmento) veio reafirmar a Infância não como uma etapa em transição, mas como um período em que os sujeitos são atores sociais competentes que se expressariam na alteridade geracional.


Os usos desses conceitos pela autora ajudam a perceber como os aspectos de hierarquização das crianças pela adequação ao que se espera dela, as regras, as normas, os rituais e as aprendizagens são subjacentes ao processo de escolarização estão presentes na tese como elementos constituidores da identidade de alunos, ao mesmo tempo, em que é analisada a maneira como as crianças se apropriam dessas experiências.


Depois de apresentadas às ferramentas teóricas, Motta aborda o campo através de uma análise da disciplina e da resistência, colocando em diálogo as culturas infantis e escolar. E busca ainda analisar as transições e rupturas vivenciadas na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental e, por fim, estabelece os modelos de relação possíveis entre esses dois segmentos da Educação Básica. De maneira clara e coesa, a autora busca identificar nos textos escritos e falados e nas práticas das culturas escolares e infantis o que é expresso a respeito do processo que transforma criança em aluno, tomando ambas categorias em sua dimensão social, a primeira enquanto categoria geracional e a segunda como uma das principais categorias identitárias para as pessoas de pouca idade.


Após a análise feita, a autora chega às conclusões.


Ela percebeu que a função da Educação Infantil, no contexto estudado, era de preparar a criança para atender às exigências de conteúdo, de comportamentos e de aptidões motoras exigidas no Ensino Fundamental. E destaca a ausência de diálogo entre os dois segmentos. Para Motta, a Educação Infantil e o Ensino Fundamental são etapas de ensino com percursos próprios e distintos que guardam tradições pedagógicas marcadas por suas histórias. Isso não significa dizer que não seria possível uma aproximação entre os dois segmentos. O reconhecimento das experiências de cada uma que, colocadas em contato, permitiria construir novas formas de relação e práticas educativas que assegurassem uma transição menos brusca de um nível a outro. Por fim, aponta algumas ações possíveis para essa aproximação: a maior proximidade com as famílias; momentos de integração entre as equipes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental; visitas às escolas ou turmas nas quais estarão ingressando no Ensino Fundamental. E ressalta: “o que não se pode esquecer é que as crianças de seis, sete ou menos de dez anos são ainda crianças, estejam mais ou menos escolarizadas. Crianças e alunos e não mais crianças ou alunos” (p. 159).

A relevância de pesquisar a passagem das crianças para o Ensino Fundamental e sua escolarização é trazer a discussão para o modelo de educação que está sendo implantado nas escolas para as crianças até os 10 anos, fase em que ainda se situam na infância. De fato, a obrigatoriedade da escolarização dos 4 anos 17 está posta. Trata-se agora de discutir que escola é esta que será oferecida às crianças, lembrando ainda o quanto é artificial essa divisão que separa em universos distintos crianças até 5 anos e 11 meses daquelas que já completaram 6 anos.

  1. [1] MOTTA, Flávia Miller Naethe. De Crianças a Alunos: transformações sociais na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental. Tese de Doutorado, Departamento de Educação, PUC-Rio, 2010, 181p.


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